quinta-feira, 15 de dezembro de 2016

Aleppo, a guerra, os bons, e os maus…


Esta fotografia foi obtida em Benghazi (Líbia) em Fevereiro de 2011. As expectativas expressas nesta parede de um comité revolucionário são elucidativas do que os líbios pretendiam ao lutarem contra Kadhafi. Depois, a história mudou de rumo.

A batalha de Aleppo exacerbou alguns ânimos. Regressaram as visões maniqueístas com uma bússola que aponta o local onde estão os bons e, em contraponto, indica quem são os maus. Recorre-se à história para argumentar, fazem-se comparações descabidas, utiliza-se a propaganda de uma parte para acusar a outra parte de estar a fazer… propaganda. Fazem-se afirmações peremptórias perante realidades complexas e difusas. Apelida-se a contra-parte de ignorante. Este cenário não difere muito das noites televisivas em que os comentadores usam o cachecol do respectivo clube de futebol e defendem o indefensável até à “morte”. É assim nos debates futeboleiros, mas não devia ser assim na análise da política internacional.

Um dia destes fizeram-me uma pergunta: por que é que os sírios (egípcios ou líbios…) apenas podem escolher entre viver sob ditadura ou em situação de guerra? Porquê essa única opção? Não haverá uma outra possibilidade? Esta pergunta foi feita por um indignado estudante sírio que veio para Portugal. Conversávamos descontraidamente sobre a Síria e, de um modo geral, sobre o Médio Oriente. A pergunta do jovem sírio arrasta a indignação óbvia de quem quer ser um igual entre os que querem a Liberdade e defendem o direito a escolher por quem devem ser governados. E, diga-se, a pergunta não me era dirigida directamente. Foi, aliás, uma pergunta com um alvo bem definido: os que condenam a chamada Primavera Árabe e continuam a dizer que a actual situação na Síria e na Líbia se deve às revoltas que eclodiram nestes países. 

É verdade que se hoje perguntarmos a sírios e líbios se preferiam ter continuado a viver com os ditadores ou se preferem suportar as guerras em que estão mergulhados, uma esmagadora maioria dirá que preferia o passado. Essa, presumo, será a resposta da maioria – por razões óbvias – mas isso não invalida que Assad seja um ditador e que Kadhafi ainda era pior.

Não é abuso intuir que a pergunta deste estudante sírio se possa traduzir numa outra pergunta, muito simples, que necessita resposta sem rodeios: como é que alguém que defende a Liberdade e a Democracia pode ao mesmo tempo defender o poder de políticos como Kadhafi ou Assad? Como é que Liberdade e Democracia são compatíveis com Assad ou Kadhadi? Como é que alguém que defende a Liberdade e a Democracia pode dizer a outra pessoa que ela não tem outra alternativa a não ser viver sob a alçada de um ditador ou enfrentar uma guerra que lhe destrói a família e o país? Será bom que os que defendem Assad ou defenderam Kadhafi assumam isso: digam aos líbios e aos sírios, olhos nos olhos, que a única alternativa que lhes resta é viverem numa ditadura; digam-lhes que não são cidadãos de pleno direito nem têm o direito de lutar por isso.

Nas guerras sempre se cometeram atrocidades. Todos os envolvidos acabam por ceder em matéria de direitos humanos. Isso não invalida que os crimes sejam denunciados e os responsáveis punidos. Mas na política internacional não há um clube dos maus e outro clube dos bons. Não é assim, por muito que custe a quem recusa ver a realidade. Em Aleppo não deve ser diferente. Na Líbia não deve ser diferente.

Para avaliarmos os "bons" e os "maus" proponho um exercício simples: imagine-se que Barack Obama e Vladimir Putin trocavam de país. Obama no Kremlin faria muito diferente do que Putin tem feito? Putin na Casa Branca faria algo diferente do que Obama fez? Ora bem, isto não significa que Putin e Obama sejam iguais, que pensem da mesma forma e defendam os mesmos valores, mas significa que os Estados têm interesses que, muitas vezes, quase sempre, se sobrepõem ao que os dirigentes políticos gostariam de fazer. Certamente que Obama e Putin algumas coisas fariam de forma diferente, mas seria muito pouco. Esta constatação não desresponsabiliza os políticos mas ajuda a perceber que a perspectiva maniqueísta é uma venda nos olhos que não ajuda a entender a essência dos problemas e os conflitos de interesses que conduzem às guerras. Há quem lhe chame “Realpolitik”.

Pinhal Novo, 15 de Dezembro de 2016
josé manuel rosendo



1 comentário:

  1. É preciso vir aqui para encontrar um contra-ponto à visão maniqueísta que nos servem à mesa, ao almoço e ao jantar.
    E em papel.
    Os bons, os maus, depende do lado do muro. Os fracos, as vítimas, esses sim são inquestionáveis.
    Sabendo que é uma das profissões mais precárias e sujeitas a pressões, mas caramba o jornalismo ainda que de gabinete poderia ter alguma argúcia.
    Não precisam de estar "embebidos" (embedded), mas parecem é bem bebidos, bebendo e debitando a visão maniqueísta (uni-polar) que lhe servem.
    Como bem refere, não há guerras limpas. E melhor o documentam as múltiplas guerras no Iraque, onde tantos jornalistas e fotógrafos foram mortos pelos "bons".

    Cumprimentos,
    Amílcar A.

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