sábado, 6 de setembro de 2014

Só a “chave” sunita pode ajudar a derrotar o “Estado Islâmico” no Iraque


A maior fonte de receita do “Estado Islâmico” (EI) é o petróleo dos poços situados na zona do proclamado Califado. Depois de acabar o dinheiro que estava nos cofres dos bancos e governos regionais, o Estado Islâmico vende petróleo. E se o EI vende, alguém compra e para ser vendido tem que chegar/passar por outros países. Mas já lá vamos.

Para já um aspecto que está a ser ignorado em debates feitos à pressa e perguntas/questões “coladas com cuspo”. Aspecto essencial da força do EI e do avanço fulgurante que, em Junho, surpreendeu quase toda a gente: o EI conta nas suas fileiras com um grande número de antigos militares de Saddam Husseín – sunitas – e é isso que lhe dá a capacidade militar estratégica para fazer o que fez. Isto acontece porque os sunitas foram excluídos do processo político pós-guerra (ou pelo menos dos benefícios que o poder proporciona…). Depois, razão maior, caminhando o Iraque para uma federação ou, quiçá, separação em estado independentes, as áreas sunitas são as únicas que não têm petróleo ou onde existe em pouca quantidade. E é precisamente por isso que algumas tribos sunitas apoiam o EI ou pelo menos não se opõem. Depois, então sim, entrará a questão de carácter religioso, que perderá força logo que os objectivos dos sunitas iraquianos sejam atingidos. E mesmo que não perca, mesmo que o Califado resista, é o poder dos sunitas que será determinante.

Quanto ao petróleo que está a alimentar o EI levanta muitas questões. Está a ser vendido a preços que variam entre 30/40 e 60 dólares o barril. No mercado oficial ronda os 100 dólares o barril. Os intermediários estão a ganhar muito dinheiro e os compradores também. E não é difícil adivinhar os percursos: só pode sair pela Síria, Jordânia ou Curdistão directamente para a Turquia. Dificilmente sairá pela Arábia Saudita ou pelo Irão. Esta sexta-feira à noite na RTP Informação, Michael Gulbenkian, apresentado como consultor em energia – e que surgiu numa reportagem da RTP no Iraque, por estes dias – disse que alguns países europeus e até Israel compraram petróleo do EI. Não sei se é mesmo assim, mas foi dito por alguém que está por dentro do negócio. 

Também foi dito no mesmo debate, por outro protagonista, que as fronteiras naquela zona do mundo são muito porosas, dando a entender que é difícil exercer controlo sobre esse tráfico. Discordo, sobretudo em relação à Turquia. Aliás, é das fronteiras mais controladas devido à questão curda. Do que me recordo bem é dessa mesma região de fronteira, do lado turco, que mais parecia um gigante cemitério de camiões cisterna aquando da invasão do Iraque em 2003. Eram camiões que faziam precisamente, já nessa altura, contrabando de petróleo, contornando assim as sanções internacionais que pouco mais permitiam ao Iraque do que a troca de “petróleo por alimentos”. E o governo turco sabia, ai não que não sabia. Tal como sabe agora, se é que o petróleo do EI passa por lá, e tal como sabem os governos dos países por onde passa esse petróleo porque tem que passar por algum lado.

Portanto, tenho para mim que para resolver o problema que o EI representa, é preciso – urgente – começar por resolver o problema dos sunitas no Iraque. Foi assim em 2006/2007 para estancar a guerra civil e é de novo a “chave” sunita que pode abrir a porta do sossego. Duvido que os bombardeamentos ao EI resolvam a situação. Se os habituais “danos colaterais” começarem a surgir, então ainda pior, será mais um elemento a favor do EI. Não adianta o “ocidente” ter razão ao qualificar os actos do EI como gestos de tempos medievais. Mais ataques “ocidentais” apenas poderão contribuir para aumentar a lista de acontecimentos de que os muçulmanos, e em particular os árabes, se consideram vítimas nas décadas mais recentes.

josé manuel rosendo
6 de Setembro de 2014


sexta-feira, 5 de setembro de 2014

O que fazer com o "Estado Islâmico"?


CENSURA não!

Parece que está aberto um debate sobre o que fazer com as imagens mais violentas do Estado Islâmico. Parece apenas, porque de facto não há nada para debater. Até agora, por cá, o que tenho visto sobre esse “Estado Islâmico”, não me parece ser nada que não possa ser mostrado. A não ser que alguns pais queiram que um telejornal seja um momento equivalente a desenhos animados ou até que sejam assim uma espécie de telenovela, sempre com os mesmo protagnistas e que, mesmo depois de estarmos uma ou duas semanas afastados, quando retomamos temos aquela sensação de não termos perdido nada.

Algumas imagens divulgadas pelo “Estado Islâmico” arrepiam qualquer pessoa, mas talvez arrepiem ainda mais quem frequenta os locais onde os actos mostrados são praticados. Que ninguém duvide disso. Concordo em absoluto que mostrar o momento da decapitação de uma pessoa não acrescenta nada à informação. É preciso saber que ela foi decapitada (ou degolada? Não sei porque não vi…) mas os requintes de malvadez são dispensáveis. Mas ficamos por aí. O resto da informação eu quero e preciso de saber para poder saber com o que conto. Mas quero saber tudo e não quero saber apenas o que os malvados do “Estado Islâmico” fazem. Quero saber quem os armou, quem os financia e por que é que, surgiram assim do nada (eu sei que não surgiram do nada, mas faz de conta…).

Para sabermos isto é preciso recuar até quando e até onde? Até à invasão do Iraque em 2003? Até à recusa dos Estados Unidos em aceitarem que Bin Laden fosse julgado num Tribunal Internacional tal como o regime talibã no Afeganistão chegou a propor? É preciso irmos à Arábia Saudita tão amiga dos Estados Unidos? Será preciso contar melhor o que se está a passar na Síria? Por que é que os ataques à Faixa de Gaza provocaram tanto alarido – e bem – e os cerca de 200 mil mortos na Síria parece que não existem? Eu quero saber isto tudo, mas a melhor maneira de não me contarem isto é começar por não mostrar o que se esta a passar com o “Estado Islâmico”. Mas também não quero apenas conhecer os argumentos da retórica “ocidental” que está sempre a passar uma esponja sobre – perdoem-me a palavra, mas não encontro outra – a merda que tem feito no Médio Oriente. 

Como nota de curiosidade fiquem a saber que a poderosa BP anunciou (4 de Setembro) que melhorou o contrato com o governo de Bagdad para exploração do petróleo de Rumaila (sul do Iraque) até 2034 e a produção vai passar de 800 mil barris diários para 2,1 milhões diários. Há muitos interesses no Iraque e no Curdistão e alguns deles falam português.

E também teremos que dizer que Steven Sotloff (recentemente assassinado pelo “Estado Islâmico” depois de James Foley) era norte-americano mas também era cidadão israelita, tal como Daniel Pearl (assassinado em 2002 no Paquistão) que agora tem sido recordado. É que se não dissermos isso tudo não estamos a revelar contornos importantes do que se está a passar.

Por tudo isto não percebo por que é que assim repente há um assomo de puritanismo quase em simultâneo com uma atracção antiga e quase juvenil para utilizar expressões e palavras encantatórias. Não sei se essas palavras são utilizadas porque são descoberta recente ou porque ajudam a dar ares de entendido. Os textos jornalísticos – porque são esses que interessam para o caso – estão cheios dessas expressões e palavras: tudo é Jihadista… tudo é terrorista… tudo é guerra santa… tudo é radical. 

A facilidade com que estes conceitos são erradamente adoptados e utilizados indiscriminadamente leva a grandes confusões. Até por cá, tudo o que não é mainstream – do pensamento dominante – é facilmente atirado para o cesto do radicalismo. Uma medida que poderia evitar esta alucinante desinformação dos cidadãos e deformação dos raciocínios seria a existência de uma "balança" em cada redacção para que nós, jornalistas, pesássemos as palavras. Porque elas têm um significado e um peso no discurso, e não há sorriso, lábios pintados ou gravata de seda, que disfarce a ignorância ou a leviandade.

Mas a pior solução será ignorarmos o que está a acontecer no e com o “Estado Islâmico” utilizando a desculpa da violência das imagens ou resumirmos a informação dada à que nos chega dos centros de poder ocidentais. A função dos órgãos de comunicação deverá ser descodificar, explicar, debater, o que está a acontecer no Iraque e na Síria. E fazê-lo em relação à informação que chega do “Estado Islâmico” mas também em relação a toda a complexa realidade do Médio Oriente que habitualmente é tratada de “raspão” quando há atentados e muitos mortos. Fazer o contrário é negar a própria existência.

Apagar a luz da informação nunca deu bom resultado e basta lembrar como os aliados na II Guerra Mundial ignoraram o sofrimento judeu. No início da década de 40 do século passado, Jan Karski fazia parte da resistência polaca e estava em Londres com o governo no exílio. Entrou clandestinamente no gueto de Varsóvia para testemunhar a desgraça que por lá se vivia e poder contar aos Aliados o que se estava a passar: os nazis estavam a exterminar judeus. Alertou os aliados e chegou a ter um ecnontro com o Presidente Roosevelt nos Estados Unidos. Não acreditaram. Ou não quiseram saber. Não havia imagens, não havia redes sociais. Sabemos todos o que aconteceu por essa altura.
Neste nosso tempo não há desculpa para não sabermos, ainda por cima quando depende apenas de nós.

josé manuel rosendo
5 de Setembro de 2014